OS MILHÕES DO SR. ALLAN KARDEC
“Fomos informados de que numa grande cidade comercial, onde o Espiritismo conta numerosos adeptos, e onde faz o maior bem entre a classe laboriosa, que almas caridosas se apressaram em espalhar pelas ruas e, certamente, amplificar. Conforme tal intriga, somos milionários; em nossa casa tudo brilha e só pisamos os mais belos tapetes de Aubusson. Conheceram-nos pobre em Lyon; hoje temos carruagem de quatro cavalos e levamos em Paris uma vida principesca. Dizem que toda essa fortuna nos vem da Inglaterra, desde que nos ocupamos do Espiritismo, e remuneramos generosamente os nossos agentes na província. Vendemos caro os manuscritos de nossas obras, sobre os quais ainda ganhamos uma comissão, o que não nos impede de os vender a preços exorbitantes, etc.
Eis a resposta que demos à pessoa que nos envia tais detalhes:
“Meu caro senhor, ri muito dos milhões com que me gratifica tão generosamente o abade V..., principalmente porque estava longe de suspeitar dessa boa sorte. O relatório feito à Sociedade de Paris, antes da recepção de vossa carta, aqui publicado, infelizmente vem reduzir essa ilusão a uma realidade muito menos dourada. Aliás, não é a única inexatidão desse relato fantástico; antes de tudo, jamais morei em Lyon(*) e, pois, não vejo como lá me tivessem conhecido pobre; quanto à minha carruagem de quatro cavalos, lamento dizer que se reduz aos sendeiros de um fiacre que tomo apenas cinco ou seis vezes ao ano, por economia.
É verdade que antes das estradas de ferro fiz algumas viagens em diligências; sem dúvida fizeram confusão. Mas convém não esquecer que nessa época ainda não se cogitava de Espiritismo e, segundo o abade, é ao Espiritismo que devo a minha imensa fortuna.
Onde, então, pescaram tudo isto, senão no arsenal da calúnia?
Seria tanto mais verossímil se se pensasse na natureza da população em cujo meio apregoam tais rumores. É de convir que faltam boas razões para se deixarem reduzir a tão ridículos expedientes a fim de desacreditar o Espiritismo. O Sr. abade não vê que vai diretamente contra o seu objetivo, porque, dizer que o Espiritismo me enriqueceu a tal ponto é confessar que está imensamente espalhado. Se, pois, se espalhou tanto, é que agrada.
Assim, aquilo que ele queria lançar contra o homem, volta-se em benefício da doutrina. Depois disto fazei alguém acreditar que uma doutrina, que em alguns anos dá milhões ao seu propagador, seja uma utopia, uma idéia oca! Tal resultado seria um verdadeiro milagre, pois não há exemplo de uma teoria filosófica que alguma vez tenha sido fonte de riqueza. Geralmente, como sucede com as invenções, come-se o pouco que se tem; seria este, mais ou menos, o meu caso, se se soubesse tudo quanto me custa a obra a que me dediquei e à qual sacrifico meu tempo, minhas vigílias, meu repouso e minha saúde. Contudo, tenho por princípio guardar para mim aquilo que faço e não gritar dos telhados. Para ser imparcial, o sr. abade deveria ter feito um paralelo das quantias que as comunidades e os conventos usurpam dos fiéis; quanto ao Espiritismo, mede sua influência pelo bem que faz, pelo número de aflitos que consola, e não pelo dinheiro que produz.
Se levamos uma vida principesca, deveríamos dispor, naturalmente, de uma mesa requintada. Que diria, pois, o sr. Abade se visse minhas mais suntuosas refeições, nas quais recebo os amigos?
... Se todos os homens fossem espíritas, não teriam inveja, nem ciúmes, nem se espoliariam uns aos outros; não maldiriam o próximo nem o caluniariam, porque ele ensina esta máxima do Cristo: Não façais a outrem o que não gostaríeis que vos fizessem.
É para pô-la em prática que não escrevo todas as letras do nome do sr. abade V... Ensina ainda o Espiritismo que a fortuna é um depósito de que devemos prestar contas e que o rico será julgado conforme o emprego que dela tiver feito. Se possuísse a que me atribuem e, sobretudo, se a devesse ao Espiritismo, eu seria perjuro aos meus princípios de a empregar na satisfação do orgulho e na posse de prazeres mundanos, em lugar de a fazer servir à causa cuja defesa abracei.
Mas – perguntarão – e as vossas obras? Não vendestes caro os manuscritos?
Um instante; isto é entrar no domínio privado, onde não reconheço a ninguém o direito de se imiscuir.
Sempre honrei os meus negócios, não importa a que preço de sacrifícios e de privações; nada devo a quem quer que seja, enquanto muitos me devem, sem o que teria mais do dobro do que me resta; assim, ao invés de subir, desci na escala da fortuna. Não tenho, pois, de dar satisfação de meus negócios a ninguém; que isso fique bastante claro.
Entretanto, para contentar um pouco os curiosos, que não se deveriam intrometer com o que não lhes diz respeito, direi que se tivesse vendido meus manuscritos apenas teria usado do direito que todo trabalhador tem de vender o produto de seu trabalho; mas não vendi nenhum; alguns até doei, pura e simplesmente, no interesse da causa, e que são vendidos à vontade, sem que me venha um centavo.
Manuscritos são vendidos caro quando se referem a obras conhecidas, de lucro previamente garantido, mas em parte alguma se encontram editores tão complacentes que paguem a peso de ouro obras cujo lucro é hipotético, quando nem mesmo querem correr o risco da impressão. Ora, a esse respeito, uma obra filosófica tem cem vezes menos valor do que certos romances vinculados a determinados nomes.
Para dar uma idéia de meus imensos lucros, direi que a primeira edição de O Livro dos Espíritos, que empreendi por minha conta e risco, mesmo não tendo editor que dela quisesse encarregar-se, rendeu-me cerca de quinhentos francos, já descontadas as despesas e depois de esgotados todos os exemplares, vendidos e doados, como posso provar documentalmente.
Não sei que tipo de carruagem se poderia comprar com isto. Na impossibilidade em que me encontrei, não tendo ainda os milhões em questão, para assumir pessoalmente os gastos de todas as minhas publicações e, sobretudo, de me ocupar com a sua comercialização, cedi por algum tempo o direito de publicação, mediante um direito do autor, calculado a tantoscentavos por exemplar vendido; assim, desconheço inteiramente os detalhes da venda e das transações que os intermediários possam fazer com as remessas feitas pelos editores aos seus correspondentes, transações de cuja responsabilidade eu declino, estando obrigado, no que me concerne, a prestar contas aos editores, mediante um valor estipulado, de todos os livros retirados, vendidos ou considerados perdidos.
Quanto ao lucro que pode advir da venda de minhas obras, não tenho que dar explicações de seu montante, nem de seu emprego. Por certo, cabe-me o direito de o utilizar como bem me aprouver; entretanto, não sabem se tal produto tem uma destinação determinada, da qual não pode ser desviado; é o que saberão mais tarde. Porque, se um dia alguém tivesse a veleidade de escrever a minha história com dados semelhantes aos relatados acima, os fatos deveriam ser repostos em sua integridade. Por isso deixarei memórias circunstanciadas sobre todas as minhas relações e todos os meus negócios, sobretudo no que respeita ao Espiritismo, a fim de poupar aos cronistas futuros os equívocos em que muitas vezes caem, por terem confiado nos boatos dos doidivanas, das más-línguas e das pessoas interessadas em deturpar a verdade, às quais deixo o prazer de deblaterar à vontade, para que mais tarde se torne mais evidente a sua má-fé.
Pessoalmente eu me inquietaria muito pouco se, doravante, meu nome não estivesse ligado intimamente à história do Espiritismo. Por minhas relações, naturalmente possuo a respeito os mais numerosos e autênticos documentos que existem; pude acompanhar a doutrina em todo o seu desenvolvimento, observar-lhe todas as peripécias, como lhe prever as conseqüências.
Para todo homem que estuda esse movimento, torna-se evidente que o Espiritismo marcará uma das fases da Humanidade. É, pois, necessário que, mais tarde, se saiba quais as vicissitudes que teve de atravessar, os obstáculos que encontrou, os inimigos que procuraram travar-lhe a marcha, as armas de que se serviram para o combater. Não menos importante é saber por que meios pôde triunfar; quais as pessoas que, por seu zelo, devotamento e abnegação terão contribuído eficazmente para a sua propagação; aqueles cujos nomes e atos merecerão ser assinalados para o reconhecimento da posteridade, e que tomo como dever inscrever nas minhas fichas.
Compreende-se que essa história não pode aparecer tão cedo; o Espiritismo apenas acaba de nascer e as fases mais interessantes de seu estabelecimento ainda não foram concluídas. Aliás, poderá acontecer que, entre os Saulos do Espiritismo de hoje, mais tarde surjam São Paulos; esperemos não ter de registrar os Judas.
Tais são, meu caro senhor, as reflexões sugeridas pelos estranhos rumores que me chegaram. Se os refutei, não foi pelos espíritas de vossa cidade, que me conhecem muito bem e que teriam podido julgar-me quanto os visitei, se em mim houvessem percebido gostos e atitudes de um grão-senhor. Faço-o em atenção aos que não me conhecem e que poderiam ser induzidos em erro por essa maneira mais que leviana de fazer a história. Se o sr. Abade V... não tem em vista senão dizer a verdade, estou pronto a lhe fornecer verbalmente todas as explicações necessárias ao seu esclarecimento.
Todo vosso,
Allan Kardec
Alamar Régis Carvalho
Analista de Sistemas, Escritor
(*) Allan Kardec, embora nascido em Lyon, passou a sua infância em Bourg-em-Bresse, daí ter sido impossível um fofoqueiro desse o ter conhecido criança pobre em Lyon.